Ensina-Me A Viver, 4

  • Temas: hétero
  • Publicado em: 08/07/23
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  • Autoria: Larissaoliveira
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Como um bolo de milho requentado podia ser tão gostoso? Milka já tinha comido três pedaços e bebido dois copos de café com leite. Lincoln a observava, sentado na cadeira à frente.


- É bom, né? Você sabe fazer um desses, Milka? 


Ela faz que não com a cabeça, diminuindo a intensidade com que devorava o bolo, sentindo vergonha por estar agindo como uma morta de fome.


- Mas vai aprender, você vai aprender muita coisa aqui - ele muda o tom para uma versão mais debochada - Mas sabe… fico imaginando quantas vezes você humilhou a empregada que servia o café pra você todos os dias. Coitada, ela deve ter sofrido na sua mão. Você gosta de maltratar as pessoas, não é, Milka? Do mesmo modo que me tratou quando eu te peguei no aeroporto.


- Me desculpe, eu não qu…


- Resposta errada! - ele a atropela, de forma rude, dando um soco leve e contido na mesa - A resposta certa seria: "Me desculpe. Sim, eu tenho sido uma pessoa má e desprezível".


Milka percebia que o medo que sentia daquele homem já estava fora de controle. O tom de voz e a mudança repentina de humor da parte dele eram o suficiente para fazê-la tremer por inteira. A sensação de que levaria uma bofetada por qualquer deslize era paralisante. Na sua cabeça passava uma cena em milésimos segundos:


"Eu te disse como deveria ser a resposta certa, não disse, Milka?" - ela o imagina com aqueles olhos perturbadores 


"Disse"


"E por que ainda não falou para eu ouvir? Você quer que eu te force a dizê-lo?" - fechando o punho em posição de soco, tudo na mente de Milka


Então ela se antecipa, para não correr o risco:


- Me desculpe. Sim, eu tenho sido uma pessoa má e… e… Ai, me desculpe, eu esqueci a última palavra…Mas eu posso tentar de novo e…


- HAHAHAHA. Não precisava repetir, hahaha - ele gargalhava - Isso tudo é medo de mim? Mas eu sou uma pessoa tão boa pra você, Milka, rsrs. Não, não precisa repetir rs


Milka engole seco e, apesar de estar com medo, não tem coragem de se levantar.


É nesse momento que Milka percebe que o homem olhava para seus seios, embora tivesse tirado os olhos imediatamente, assim que fora percebido, como se pelo menos nesse campo a respeitasse. Milka permanece em silêncio, comendo mais um pedaço de bolo, com uma nova cena se formando em sua cabeça:


"Outro pedaço, Milka? Você não tem modos, é alguma morta de fome, por acaso?"


Mas devido a fome, ela resolve arriscar, enquanto Lincoln continuava com seu tom irônico e sarcástico:


- Além do mais, essa frase não tem efeito se você não acreditar nela, mocinha. Tem que vir do seu coração. Você não acredita que seja uma pessoa má. Uma pessoa asquerosa, nojenta, antipática… - ele mostrava um desgosto crescente a cada nova palavra. Suas feições já eram de repulsa total - ... Uma inútil, um peso para todos, especialmente para seus pais! Não, você não se vê assim, não é mesmo, Milka? - BLAM!, um baita soco na mesa, que surpreende Milka, fazendo-a tremer dos pés à cabeça - Sabe por que você não se vê assim, Milka? Porque você é um monstro! Uma pessoa deformada, incapaz de enxergar a verdade sobre si mesma! Você pode ser essa moça lind… - ele se retrata antes de terminar - … essa moça bonita por fora, mas por dentro você é horrível! Você é um desperdício! Mas você não sente isso, não é mesmo?


Milka deixava escapar algumas lágrimas ouvindo tudo em silêncio. Percebia que, como nas cenas que criara em sua cabeça, o homem agora realmente cerrava os punhos, como se quisesse bater em algo e só precisasse de um motivo qualquer. Por que aquele homem a via dessa forma? Será que ele tinha algum ponto de razão, afinal de contas? 


Milka refletia também que ainda não tinha uma ideia clara do porquê estava ali. Aquele homem não queria dinheiro, não queria nada. Talvez fosse só um psicopata, daqueles que matam sem razão, e isso fazia os ossos de Milka gelarem. Depois de um tempo, ela toma coragem:


- … Por que me trouxe aqui? - sem olhar em seus olhos


- Para te ensinar, Milka - ele também não a olhava, ignorando-a e até desprezando-a


- Me ensinar o quê?


- A viver. Lave a louça agora. Depois arrume a casa. Eu estarei sempre de olho em você. 


- Q… quando vai me deixar ir embora?


Subitamente, ele segura no queixo de Milka com violência suficiente para machucar, a fim de que ela não pudesse evitar o olhar em seus olhos enquanto respondia sua pergunta. Era como se os seus olhos ficassem vermelhos e de suas narinas saíssem fumaça, dado ódio que podia ser percebido em sua voz diabólica:


- Somente quando você estiver tão quebrada, Milka, que eu precise recolher os pedaços para montar o quebra-cabeça. Está claro assim?


Milka não entendia, mas tinha medo de continuar perguntando àquele homem louco e desequilibrado. Ela fecha os olhos com força e enxuga os olhos rápido, acreditando que seu choro o podia irritar. Por fim, ele revela um pouco mais de si, soltando o queixo de Milka com a maior brutalidade:


- Farei isso… Ou não me chamo Lincoln! - e ele se levanta, indo para fora do casebre.


Naquele dia Milka não viu mais seu raptor. Não que ela gostasse de sua presença, mas se ele fosse embora, o que seria dela? Morreria naquele lugar ermo e isolado.


Milka lavava toda a louça. Eram pratos feios, talheres amassados, copos de molho de tomate, muito diferentes da fina porcelana e da prataria com as quais estava acostumada. E enquanto lavava, pensava em seus pais, na cena hedionda que Lincoln havia narrado. E isso a fazia perder-se em remorsos e chorar.


"Eu realmente errei, sei que sou a culpada pela morte deles..."


Após terminar, ela retira mais água do poço e depois arruma o ambiente. Depois disso, não havia mais nada para ser feito. O tédio era completo.


Ao longo da vida, Milka não havia aprendido a lidar com o tédio de forma sadia. Se metia em problemas, criava situações desnecessárias, punia por diversão a quem podia, e algumas vezes se drogava... Por isso o tédio agora a agredia tanto: não suportava ficar a sós consigo mesma; precisava urgentemente de distrações, que iam desde o celular ao álcool ou qualquer outra coisa. Milka não sabia estar a sós consigo mesma.


Três dias. 


Três dias haviam se passado e Lincoln ainda não havia aparecido. Deixou apenas um chinelo Havaianas usado, alguns poucos pães velhos e um sabonete. Nesse período de tempo, Milka experimentou o pão que o diabo amassou. O fato de não haver mais querosene para a iluminação noturna a estava levando à beira da loucura. O medo a dominava cada  vez mais e tinha um pesadelo atrás do outro.


Haviam três principais inimigos, além do escuro e do tédio, agora que Lincoln a havia abandonado para morrer: a fome, os escorpiões e o frio noturno. E uma vez que a comida havia acabado, todo o tempo de ócio se transformava na busca de qualquer coisa para comer. 


Milka percebeu que estava passando fome quando voltou à mesa para comer as migalhas do último pão, e isso incluía as migalhas que haviam caído no chão. Seus banquetes diários, seus pratos levados à cama, tudo isso não existia mais. Estava faminta, o estômago dolorido e ela sentia fortes dores na cabeça e no corpo.


Assim, Milka passou a explorar mais a região em torno do casebre, achando algumas amoras. Comeu o quanto pôde, desesperada, mas a quantidade era irrisória para sua fome. Infelizmente não havia mais nada por perto e se arriscar ao longe era muito perigoso. 


Tomar banho era algo que Milka evitava também. Aquele bueiro sujo cheio de sapos lhe dava asco e, além disso, era só questão de tempo para a caixa d'água esvaziar. Muito provavelmente, a caixa era enchida manualmente com a água do poço e ela não conseguiria fazer isso sozinha quando acabasse. E para piorar, o calor daquela região fazia a água quase ferver na maioria do tempo, o que tornava o banho inviável.


Milka pensava também em sua beleza, no quando devia estar feia. Queria se olhar em um espelho, mas Lincoln não deixou nenhum. Tentou algumas vezes se olhar na água do balde de alumínio, mas a imagem fraca apenas lhe mostrava uma silhueta fantasmagórica e pálida.


Sentada na porta do casebre, recebendo um pouco do sol que já ia se pôr, ela lamentava mais uma vez, temendo a escuridão.


"Será que eu merecia isso?"; "Será que vou voltar pra casa um dia?"; "Será que ainda estão me procurando?", "Será que… folhas de árvore são comestíveis?"... "Eu estou morrendo de fome, eu comeria qualquer coisa…"


Conforme o sol se punha, o frio se apresentava para Milka, que se preparava para mais uma noite gelada e cheia de escorpiões - escorpiões que ela ainda não tinha visto dentro de casa, é verdade, mas chegou a ter o desprazer de encontrar um lá fora, perto do balde de alumínio, quando foi tirar água do poço. Os malditos eram bem reais e bem amarelos.


Milka cogitou pôr o colchonete sobre a mesa, mas viu que esta não suportaria o peso, sendo de material muito barato. Pensou até em colocá-lo sobre a pia, mas esta cederia também. Dormiu na cadeira, enrolada no cobertor e acordou cerca de duas horas depois, sentindo dores suficientes no corpo para se lançar ao chão, tateando até o colchonete no escuro, mesmo temendo os escorpiões. 


No escuro total, no medo completo, na fome abissal e na tristeza profunda, Milka tentava dormir e não conseguia. A noite seria longa novamente. Seu estômago doía e ela sentia náuseas e forte dor de cabeça.


Assim que Milka acorda, uma preocupação lhe vem à cabeça: precisava comer algo, seu estômago estava doendo, não era mais uma mera fome, era literalmente dor, e se não comesse algo logo, as consequências poderiam as piores.


Estava louca de fome. Saiu fora do casebre disposta a entrar na floresta com a roupa que estava no corpo - bermuda e camiseta -, apenas calçando o Havaianas velho.


Milka não tinha em mente caçar, pois não sabia fazê-lo, mas devia haver alguma fruta, algum legume ou alguma verdura em algum lugar. Mesmo assim, imaginou-se comendo lesmas e coisas do tipo caso não houvesse outra saída.

....................


Um dia depois, um carro preto chegava à frente do casebre. A chuva estava bem forte, o que faz Lincoln rir, pensando no incômodo que devia ter sido para Milka, acordar em meio às goteiras. Ele sai com seu habitual terno preto e um guarda-chuva enorme. Ele não se importa em acender um cigarro ali mesmo, embora algumas gotas molhassem seus sapatos. Detestava essa maldita viagem, era sempre desgastante. No futuro, pensava ele, precisava arranjar outro esconderijo. Mas afinal, aquilo um esconderijo ou um cativeiro? Não importava. 


A etapa do abandono era uma das prediletas de Lincoln. Privados de qualquer conforto e expectativa, e tomados de fome real, os almofadinhas mimados começavam a usar pela primeira vez um recurso que desconheciam, soterrado debaixo de várias camadas de privilégios e facilidade: o instinto de sobrevivência. Era necessário para que vissem o que podiam com o trabalho de suas mãos, sem o auxílio de ninguém. 


Outro ganho com essa etapa era refletir sobre tudo o que se perdeu e como não se valorizou o que tinha. Lamentar não ter preservado, chorar por não ter sido grato.


Havia também o início da recuperação do senso de autoridade. Uma pessoa que vive sem ter que lidar com as consequências de seus atos é uma pessoa que não se torna responsável nunca. O abandono fazia a pessoa temer e respeitar seus superiores, reconhecendo ser inferior a alguém pela primeira vez na vida. Pela primeira vez saber o que é ter que obedecer. Elas descobrem que não são deuses como pensavam, mas além disso, que os deuses existem e podem ser cruéis.


O cigarro termina e ele se aproxima do casebre. Abre a porta e não há ninguém na sala. Lincoln põe algumas sacolas sobre a mesa, observando que o lugar estava arrumado. 


- Milka, acorde, eu cheguei! - ele alça a voz o suficiente para ser ouvido no quarto. E só nesse momento se dá conta de que havia esquecido de deixar o saco de arroz antes de ter a abandonado por dias.


"Merda!" - ele se preocupa


Ninguém responde e ele vai até lá certificar-se.


"Maldição, onde ela está?" 


Lincoln deixa tudo e sai rápido lá fora, sem evitar a chuva forte, nem se preocupando com o guarda -chuva. Abre a porta do banheiro e nada. 


"Merda! Puta que pariu!" - ele se preocupa mais


- MILKAAAAAAA! - ele grita para todos os lados


"Maldição, maldição!"


- MILKAAAAAAA, onde você está!?


Ele olha para todos os lados, se preparando para caçá-la novamente naquela maldita floresta. A retardada devia ter entrado lá para encontrar algum alimento e se perdeu… ou coisa pior! Teria que se enfiar na mata com essa chuva.


Por instinto, preferiu ir exatamente pelo mesmo ponto onde dias atrás ela tentou escapar. Sapato social e terno não são as melhores condições para esse ambiente, mas não havia tempo para mudar. A chuva dificultava muito o processo, os galhos batiam em todos o seu corpo e o chão úmido o fazia deslizar a todo tempo.


- MILKAAAAAAA! - ela abria os galhos com as mãos e braços e adentrava


Era inútil. Tudo era floresta e talvez algo muito ruim tivesse acontecido. Seu coração gela. Nunca havia perdido nenhum caso. Nunca um caso terminou mal. O que diria ao Sr. Marvin se…


- MILKAAAAAAAAAAA!


Duas horas na floresta. A chuva desgraçada cessou por meia hora, mas agora irrompia novamente. Sua pele já estava gelada e não tinha o menor sinal de Milka. Sem esperanças, senta no chão, em meio a lama que se formava e põe a mão na testa. O que tinha feito? Que direito tinha de trazer uma pessoa para aquele lugar e tratá-la de forma tão arriscada? Quem o havia escolhido para ser o juiz da vida alheia? Quem ele achava que era? Como diabos pode esquecer de deixar o pacote de arroz!?


É nesse momento, com os olhos fitos na floresta, que ele vê um pedaço de tecido rasgado em um tronco de árvore. Ele se levanta rápido e assustado:


- MILKAAAAAAA, MILKAAAA, VOCÊ ESTÁ AÍ???


Nada. Lincoln observa rápido o chão e, pensou talvez estar delirando, mas aquela porção de mato estava um pouco mais baixa que as demais, podia ser o caminho por onde ela andou. Ele se atira no mato e vai, cada vez mais para dentro da floresta…


- MILKAAAAAAA


E logo ao término do grito, via ali, quase totalmente enterrado na lama, o chinelo de Milka


- MiILKAAAAAAAAAA


Era um milagre tê-lo visto, e sem chinelo ela não ter andado muito tempo. 


Lincon continuava a sua busca até que pôde ver a triste cena que o fez seu coração parar: um corpo feminino ao chão, pálido como um cadáver. 


- Milka, Milka! - ele se atira ao chão - Milka, acorde, acorde! - balançando-a pelos ombros


Nenhuma reação. O corpo gelado, sem vida.


- Milka, não…. Não… Merda, não, não! - ele encosta a cabeça no peito de Milka e não consegue ouvir nada.


- Por favor, acorde, acorde! - ele a abraça, com sua cabeça aos peitos de Milka, chorando pela culpa que desabava sobre ele como a forte chuva


E os olhos dela se abrem


- Milka!!!


Ela abre os olhos e vê seu raptor. Seus olhos estavam opacos, sua pele gélida e cinzenta, não havia força alguma em seu corpo. Estava confusa, perdida na sua própria mente enevoada:


- Pai… - tentando erguer um braço, talvez pare acariciar-lhe o rosto


Lincon estava atônito. Ele chorava, mas não percebia. Já nem sentia a chuva forte desabando sobre si


- Não, eu… eu não sou o s…


- Pai, me desculpa… - as lágrimas escorriam


- Milka, eu…


- Me desculpa, pai… Estou com medo… tem escorpião aqui… Pai, me ajuda…


- Milka, calma, eu vou te levantar! 


Milka então recobra um pouco da razão e leva um susto, lembrando de Lincoln, mas ainda sem força:


- NÃO! Não me bate, não me bate! - ela chorava, aos prantos, querendo proteger o rosto, acreditando que seria punida


Lincoln engole o choro e disfarça, antes que Milka pudesse perceber sua emoção:


- Eu não vou te bater, Milka. Eu… Vim te salvar.


E Milka desmaia novamente.


Ajoelhado, Lincoln experimentava um combo de emoções, desde alívio - embora ela ainda corresse perigo -, até compaixão pela moça. Ele chorava, trazendo-a um pouco para cima de suas pernas, se preparando para carregá-la. Não sabia como fazê-lo por um caminho tão longo e escorregadio. Ainda no solo, ele olha para o rosto de Milka.


"Céus! Como pode ser tão bonita?"


"Esses lábios… malditos lábios…"


Escorrega os olhos para o busto da moça. Que belo par de seios! Depois, olha novamente olha para os lábios…


Lincoln se inclina um pouco e a beija. Os lábios moles, sem resistência. Um beijo rápido e com ternura. Lincoln estava apaixonado.

*Publicado por Larissaoliveira no site promgastech.ru em 08/07/23. É estritamente proibida a cópia, raspagem ou qualquer forma de extração não autorizada de conteúdo deste site.


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